A relação não era a mesma depois que eu saí daquele hospital: Não me olhava mais nos olhos como antes. Ouvia poucas vezes meu nome. Não conseguia mais dormir, comer e tão pouco sentia a necessidade de respirar. Todavia ainda a vigiava em seus sonhos todas as noites, a espiava na cozinha enquanto preparava algo ou quando regava o nosso jardim; alimentava meus sentimentos de um ser protetor. Apesar de tudo nunca vou me esquecer daquela noite em que ela tocava uma sonata triste no piano desafinado. Meus sentimentos flutuavam entre a terra e o céu; a razão e a emoção. E mesmo ao som melancólico e destoante daquelas notas a sua presença mística tocava minha alma no mais profundo âmago do homem... Amor? Nada mais fazia sentido ao passo que aquilo significava tudo. Não havia mais aquela necessidade física ou carnal. Naquele momento tudo era inteligível e magnífico; harmônico. Flash! Num instante sublime, assim como aquela nota intensa e estranha no meio da melodia, senti a fria realidade. Fiquei com vontade de abraçá-la num ato eterno. Momento em que você pensaria: "Que seja para Sempre." Ouvi de um sábio para nunca dizer nunca, porém nunca vi o sempre ser para sempre. Contive-me. Assim como para todo começo há um fim; a música acabou. Procurava ansioso pelo seu olhar enquanto a elogiava pela apresentação. Ignorado. Desde então foram assim as noites em que ela tocava naquele piano desafinado e eu ali a escutar.
"A felicidade é um breve momento entre duas tristezas." Essa frase passou ser constante naqueles tempos da minha vida. Vida? Pensando bem talvez a única coisa que me prendia ali dizendo ser aquilo uma vida era a existência daquele ser único. Único por - naquele dito "breve momento" - ser capaz de preencher minha alma com esperanças. Ter esperanças significa estar vivo? Talvez o fato de ter dúvidas ao menos me fazia existir. Ah! Essas dúvidas cruéis que crucificam qualquer homem. Fazem com que tornemos guerreiros incansáveis para, a qualquer custo, encontrar a tão inconstante verdade. Naquele dia eu a segui. Tive coragem para fazer esse ato desnecessário. E Eu já sabia, mas não importava o quanto soubesse. Precisava que a verdade ficasse cara a cara comigo. Era meu orgulho machista dominando-me novamente.
Como todas as manhãs depois da cena do piano eu já estava acordado espreitando pelo seu olhar, mas era como se não estivesse ali. Levantou lentamente, passou a mão por aquela face cansada e bela. Foi até ao banheiro, lavou o rosto e escovou os dentes. Penteou o cabelo algumas vezes. Só então desceu para cozinha. Eu costumava descer depois e ser recebido com um café da manhã na mesa e um beijo. Porém, dessa vez ela desceu diretamente para porta principal e olhou na minha direção. Sem precisar dizer nada eu senti naquele olhar uma espécie de adeus. Fiquei paralisado! Quando retomei ao estado normal era óbvio que não sairia por aquela porta. Corri até uma janela aberta da sala e já estava fora de casa. Estranho: ela não saiu com o carro. Então me lembrei daquela velha padaria próximo a nossa casa. Como uma sintonia entre os nossos pensamentos realmente estávamos a caminho da padaria. Não era um espião profissional, entretanto não estava sentindo muita dificuldade. Por mais que meus passos fossem pesados ela nem percebia. Ou estava muito distraída...
Em rápidos cinco minutos já estávamos de frente com a padaria. Escondi-me atrás de uma das árvores grandes da praça ao lado. Meu coração por algum motivo batia mais forte do que nunca. Talvez fosse pelo fato de ser a primeira vez fazendo aquele ato tão pútrido. No entanto esse sentimento de ansiedade era seguido com um friozinho de medo e tristeza porque eu já sabia. E não foi por menos: Um homem se aproximou de sua mesa. Beijou seus lábios - ele beijou os lábios dela?! - e segurou suas mãos. Aquela cena toda já era prevista, mas meu ser recontorcia-se, esperneava-se; estado de fúria entristecida! A garçonete trouxe duas xícaras de café ou chá – isso não importava - mas, minha amada não tocou uma só vez nelas. Num súbito movimento levantaram e saíram da padaria. Para onde estavam indo? Não sabia até depararmos com aquele grande portão de ferro-negro; o cemitério.
Meus pensamentos entraram em colisões múltiplas e inconstantes. Não conseguia imaginar o porquê de tudo aquilo. Mesmo prevendo a cena anterior ainda estava chocado. E agora estávamos no cemitério. O que fazia sentido? Não sabia dizer. Foi então que vi ela sozinha. Estava em frente a um túmulo qualquer. Seria algum familiar? Ou algum amigo? Nunca a vi por ali. Aliás, nunca a vi fazendo aquilo. Então ela ajoelhou ao lado do túmulo e colocou uma carta sobre a lápide. Uma carta? Aquele mistério todo se transformou em desespero quando vi algumas lágrimas escorrendo no seu rosto; seus lábios arriscaram algumas palavras. Passaram alguns minutos e ela desapareceu naquelas planícies cinzentas e sem vida. Foi aí que toda aquela coragem e dúvida sobre o que acontecia foi se transformando, assim como as nuvens mudam de forma antes de uma tempestade. Estava com medo. Comecei aproximar daquele túmulo com uma sensação de que já o conhecia. A sensação de estar preso e fechado aumentava a cada passo. E um vento frio com cheiro de chuva fez com que a carta caísse aberta sobre meus pés. Não tive forças para segurar aquele pedaço de papel rascunhado. Ajoelhei-me. Quando comecei a ler, minhas mãos trêmulas já denunciavam o choque. Não conseguia mais continuar. Apenas algumas frases da carta se repetiam de maneira desordenada na minha mente: "não consegui te dizer a verdade enquanto você estava no hospital..."; "me desculpe se não te amei como você me amava...", "me perdoe..." Um trovão! De repente senti uma fraqueza incalculável. Sobre o túmulo e de frente com a lápide uma lágrima caiu sobre a carta molhando-a. Recusava-me em aceitar o que lia com a mão ainda trêmula na boca. Estava escrito logo abaixo do epitáfio: Meu próprio nome.
Fernando Neves; Projetos Aleatórios.