quarta-feira, 22 de outubro de 2008

Aquela Criatura - Prólogo

Não chora, não sente fome, não dorme...

Definições horrendas, robustantemente horríveis ao ponto de serem medonhas; nojentas. Do pântano sombrio veio aquele ser pútrido, repugnante e indesejável. Meretriz foi aquela que não deu a luz, e sim a escuridão fazendo com que nascesse mais um morto-vivo, mais um fétido feto. Feto? Aquilo era um tumor malígno, cancerígeno que crescia as custas de ódio, raiva, rancor... e de amor. Amor por destruição e caos!
É, nasceu mais uma criança. Mãe ainda sob efeitos anestésicos da morfina derrama lágrimas. Lágrimas de alegria. O pai? Ali do lado. Também em prantos. Médicos? Uns dois. Enfermeiras, se não me perco em contas umas cinco. A alegria foi sustentada com o som de um tapa seguido de um choro agudo e incessante. A criança estava viva. Mais águas derramadas. Encher-se-iam rios só das lágrimas daqueles pobres seres que se alimentavam de uma felicidade momentânea. Ilusão? Somente um eufemismo e uma pitada colorida de ilusão sobre o fato da criança ter nascida com ajuda de duas parteiras e uns cinco vizinhos presenciando a cena. Ah! E as lágrimas eram apenas consequências de dores físicas.
Dariam do bom e do melhor aquela criatura que nasceu. Evitariam a creche, seria viagiada 24 horas por dia. Somos Pais corujas - subjugavam-se. Escola seria a próxima etapa. Aos cinco, sete anos já estaria numa escola. Das melhores, ressalva o pai. Depois da escola com certeza entraria numa faculdade, uma boa faculdade. Faria sua vida, caminharia com seus próprios pés apartir dali. Ilusão? Sim, agora sim é uma ilusão. Nascida no onírico humano e morta ali mesmo.
Na casa haviam seis crianças. Pai ausente, só chegava de madrugada e bêbado. A Mãe tentava cuidar dos pequenos até a hora do almoço. Tabalhava de tarde, cuidava mais da casa dos outros ao invés da própria. Era uma singela empregada de casa, de casa dos outros. O mais velho tomava conta dos outros cinco. Dizia tomar conta - entre aspas. Gostava de fumar como o pai: uma, duas, três tragadas e acabava. Acabava com um cigarro para começar outro. Assim outro. E mais outro. Outro ali? E aquele que... perdi a conta. Mas ele fumava: maconha, craque, cola, tíner... seja lá o que for, acima de tudo: fumava!
Não tiveram aquela educação tão sonhada. Mas iam a escola que ficava a dez ou onze quadradas do barraco. É, moravam num barraco. Simples mas firme e forte. De todas as enchentes, ventos fortes e desabamentos era a única casa que ficou em pé até hoje. O pai teve dinheiro para pelo menos fazer algumas colunas e um quarto com tijolo e cimento.
O quê? Porque não levei a alma desses seres? Dó? Você diz que tem dó. Alguns dizem: "É a vida, né?". Alguns mais místicos já falariam: "É o destino...". Todavia, mesmo tento controle da morte, não posso simplesmente tirar a vida. Eu ofereço a morte, não tiro a vida. Além do mais, se tirasse a vida dos "coitados", teria que tirar de mais alguns outros milhões...
Porém, algo naquela casa me intriga. Faz com que perca meu tempo estudando, analisando e vendo coisas tão inesperadas. Refiro-me aquele ser mais novo. O último a nascer. Ele é diferente. Não se relaciona com os outros da casa. Nega qualquer tipo de ajuda. Não chora, não sente fome, não dorme... um ser anormal. Talvez ele se alimenta das surras que leva do pai bêbado, das brigas dentro daquela casa, do som das balas perdidas... é, não tenho mais dúvidas. Ele é um devorador de sentimentos. Seja qual for o sentimento ele devora. Como? Ele tem cinco sentidos para ver, cheirar e sentir. Fora a sua própria conciência que gera sentimentos diversos e controversos. Sim, sem mais dúvidas: um Devorador de Sentimentos é aquela criatura.


Fernando Neves; Projeto Aleatório: Aquela Criatura.